
A sociedade, o Estado e os negros não encontram palavras certas para explicar a complexidade da identidade negra no Brasil

Rafaela Trevisan Cortes
Marcus Vinícius
Vinícius Scott
Gabriel Callegari
Ao perguntar para o público num questionário da internet quais das tonalidades de pele consideram negra de acordo com a classificação de Fitzpatrick, os resultados foram diversos. A maioria (40%) considera os tons de quatro a seis, e em segundo lugar somente a cinco e seis (38%). Ainda assim, 14% dos entrevistados identificam um negro quem tem as cores de pele entre três e seis.
Ao questionar o público, por meio de um formulário on-line, sobre quais tonalidades de pele consideram negra se obteve diversos resultados. A maioria (40%) considera os tons de 4 a 6 e, em segundo lugar somente 5 e 6 (38%). Ainda assim, 14% dos entrevistados identificam negro quem tem as cores de pele entre 3 e 6.
Nas palavras do historiador-doutor Carlos Alberto Medeiros Lima, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a dificuldade de definição da identidade negra existe por conta dos diversos fatores envolvidos para a sua construção, como os conceitos sociais, a própria história e até a etimologia das palavras. Ele ressalta ainda que aquele que se identifica como negro acaba alegando que existem diferenças entre os seres humanos, o que levanta a discussão da existência de raças.
O conceito de raças, para o antropólogo-doutor e professor da UFPR, Ricardo Cid, só existe por conta por de uma relação histórica-social de dominação por uma elite branca. No campo da biologia não há diferença além da quantidade de melanina presente no corpo.

No Brasil ainda é muito difícil definir o que é ser negro. Eles são a maioria da população, correspondendo a 53% do total de habitantes segundo dados de 2014 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mas mesmo para quem faz parte deste grupo social, definir a identidade negra é algo muito complexo.
Tatiane Nunes da Silva, de 34 anos, por exemplo, se identifica como negra, mas para ela foi um pouco difícil assimilar a diferença que tem de seus pais, ambos brancos. O gene afrodescendente foi herdado de sua avó.
A tonalidade de pele, por si só, se mostra insuficiente para indicar quem faz parte deste grupo social. Um dos poucos estudos divulgados sobre a classificação de cores de pele é a do médico Thomas Fitzpatrick, que anunciou suas pesquisas na escola de Medicina de Harvard em 1975 e é a utilizada oficialmente nos estudos de biologia no Brasil de acordo com a Sociedade Brasileira de Dermatologia (SDB).
Segundo o estudioso, existem seis tipos de tonalidades: a muito clara, que não bronzeia com a luz do sol, a clara, que pode queimar, mas não bronzear; a morena clara, que raramente se bronzeia; a morena escura, que sempre bronzeia, mas nunca queima e, por fim, a pele negra, que nunca queima, mas sempre bronzeia.
O parentesco com afrodescendentes também parece insuficiente, visto que a miscigenação brasileira é grande - e nem todo mundo que tem um ancestral proveniente da Africa nasce com a pele escura. É isso que mostra a pesquisa feita pelo projeto Epidemiologia Genômica de Coortes Brasileiras (EPIGEN - Brasil) coordenado pelo cientista Eduardo Tarazona Santos, professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A pesquisa foi divulgada em 2015 e é considerada o estudo mais completo do genoma brasileiro.
A pesquisa mostrou que dos genes de 6.497 pessoas que vivem em Salvador (BA) a maioria tem gene africano (50,8%), seguido da europeia (42,9%). Em outras localidades, como na cidade de Bambuí, em Minas Gerais, a contribuição do genoma africano é de 14,7%.
Por mais que na época de divulgação da pesquisa a miscigenação tenha provado ser menor do que o esperado no Brasil, o repórter que também presta serviços como pesquisador autônomo, Gabriel Callegari, garante que muita gente considerada branca tem antepassados negros. O problema, segundo ele, é conseguir identificar a ancestralidade quando a maior parte dos registros históricos não existem mais.
O repórter usa a si mesmo como exemplo da dificuldade de encontrar informações sobre os antepassados negros. Apesar de ser considerado branco, descobriu em sua árvore genealógica uma trisavó negra. Os documentos comprovam somente que ela foi uma escrava liberta provinda da costa da África: sem nome dos pais ou avós, somente os nomes de quem um dia a teve como propriedade. “Para uma pesquisa genealógica essas informações não têm muita validade, porque quebra a linhagem e não se consegue saber o que houve além daquilo. É uma história que foi apagada”, relata.
Este processo de esquecimento, o qual relata o pesquisador, foi uma das características do processo de colonização do Brasil pelos europeus. Segundo dados divulgados pela Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB-RJ, foram 1 milhão e 700 mil escravos trazidos para o país durante pouco mais do que 358 anos de escravidão. A maioria dos escravizados (60%) eram crianças ou adolescentes, de acordo com a pesquisa.
O pesquisador ainda salienta que não foi somente os documentos da história negra que foram apagados, mas também sua identidade. Ele conta que nos poucos documentos históricos que restam sobre contratos de compra e venda de escravos pode-se perceber que o nome daqueles que não eram nascidos no Brasil foram aportuguesados. As origens foram apagadas seja por meio dos poucos registros feitos ou pelo processo de evangelização forçada.
Até mesmo as palavras usadas para definir o que é negro partiram de seus dominadores, acrescenta o historiador. Como exemplo, ele cita a vinda dos escravizados para o Brasil: “Quando chegaram aqui pertenciam a sociedades diferentes, vários países, mas aqui foram chamados de africanos e inclusive dizem que tinham sido vendidos pelos seus irmãos - por que irmãos? Só por que eram da mesma cor?”, questiona Lima.


As definições para identificar o negro também mudaram ao longo do tempo para o Estado, presentes principalmente na categorização utilizada pelo censo do IBGE. Em 1890, os termos variavam entre preto, mestiço e caboclo. Já a partir de 1950 surgiu o pardo para identificar quem tem mistura de tonalidades e etnias, além do preto.
Segundo o Estudo das Categorias de Classificação e Raça, de 2008, do IBGE, a justificativa para a não utilização do termo “negro” nas pesquisas é pelo sentido pejorativo da palavra. Ele só foi incluído com vigor depois dos anos 1970 com ações do Movimento Negro. Dessa forma, percebe-se a utilização de dois termos simultâneos para classificar esta população, sendo uma pela cor (preto) e outro pela raça (mestiço).
Quando a possibilidade de autoidentificação como negro começou a aparecer nas pesquisas de censo demográfico do IBGE, ainda foi visto a preferência pela categoria preta. O termo foi em torno de 10% das respostas no Mato Grosso e no Distrito Federal ,e de 9% em São Paulo.
Apesar de novas definições aparecerem no vocabulário utilizado pelo Estado, nenhuma nova modalidade surgiu para ajudar a definir o que é ser negro nas pesquisas estatais desde 1920, mesmo sendo o termo "preto" usado até hoje, considerado racista por algumas vertentes de movimentos étnicos.

Why We're Great >
Porque irmãos? Só porque são da mesma cor?
Professor-doutor em história Carlos Alberto Lima, da UFPR.
Um questionário próprio desta reportagem também constatou divergência de opiniões sobre os termos usados pelo Estado. A definição parda, entre os relatos daqueles que se consideram negros, é visto como fator preconceituoso. Uma das respostas resume o pensamento de tantas outras semelhantes: “para nós negros não existe cor parda. Essa classificação foi criada porque o preconceito na sociedade é tão grande para se tentar definir negro como “menos negro” para ajudar a melhorar a posição social”, opina um anônimo.
A maioria dos personagens (85%) disseram que a cor de pele é um fator que determina as oportunidades sociais de um indivíduo, e quase a mesma quantidade de pessoas (87% das respostas) alegam que o grau de preconceito sofrido aumenta conforme o escurecimento da cor.
Segundo 68% dos entrevistados, ser negro influencia a vida das pessoas mas não ao ponto de mudarem suas visões de mundo. Nas respostas dos que não se consideram negros, ainda houve os que alegaram que não deveria existir uma diferenciação, uma vez que, do ponto de vista biológico, raças não existem.
Entre os relatos dos próprios negros, ter a pele escura é sinônimo de muito sofrimento e trabalho dobrado devido ao preconceito muito presente. O porteiro Evandre João Pereira, de 41 anos, é uma das tantas provas da dificuldade que é ser negro no Brasil - ao contar sua experiência pessoal, pontua mais coisas negativas que positivas. Entre elas, o olhar de inferioridade, necessidade de se esforçar mais para ter as mesmas oportunidades e os das generalizações preconceituosas.
A parte mais difícil para ele foi de ser um jovem negro no Brasil. Quando ele tinha cerca de 20 anos, conta que era comum as batidas da polícia ou investigações desnecessárias: “Já fui abordado várias vezes. Uma vez no terminal do portão (Curitiba) eu estava de sobretudo e boné virado para trás. Quando os policiais me notaram me abordaram, revistaram minha mochila que estava só com o uniforme da empresa dentro e queriam me levar para a delegacia por motivo nenhum, alegando que eu era um suspeito de roubo”, conta.
Ser negro no Brasil é estar mais vulnerável à violência. A cada 100 pessoas assassinadas no país 71 são negras, eles têm 23% de chances a mais de ser vítimas de homicídio, de acordo com pesquisa do IBGE. Isso representa 23.100 jovens negros de 15 a 29 anos mortos por ano, uma média de 63 por dia, de acordo com a média calculada pelo Mapa da Violência de 2014.
O valor assusta os especialistas consultados no relatório feito em parceria do governo com empresas de pesquisa. Os estudiosos falam sobre um genocídio dos negros no Brasil. No mesmo estudo evidencia-se a desigualdade de quem tem pele escura até na hora da morte. As taxas de homicídio entre jovens brancos caiu de 10 mil jovens mortos para quase 7 mil, de 2002 a 2012. Já entre os negros, este subiu de 17 mil para 23 mil no mesmo intervalo de tempo.
Ser negro no Brasil também significa ter menos oportunidades de crescimento empresarial ou boas oportunidades de emprego.
Os dados mais uma vez comprovam a desigualdade. Apesar de serem maioria na população, os negros representam somente 14,4% da parcela mais rica do país e entre o 1% mais ricos, somente 12,4% fazia parte em 2014, segundo dados do IBGE.
A faxineira Tatiane, de 34 anos, chegou a ser recusada para uma vaga somente por conta da cor de sua pele. “Fui procurar emprego numa lanchonete e ela, a dona, pediu meu currículo. Quando a encontrei presencialmente, ela me disse que já tinham contratado alguém. Dias depois o mesmo lugar me ligou pedindo para voltar lá, assim que cheguei a situação aconteceu de novo”, conta.
O ex-jogador de futebol João Barbosa, de 94 anos, diz que percebeu o preconceito diminuir ao longos dos anos. No relato dele, levanta a hipótese de que talvez o preconceito social ainda se sobressaia sobre o racial e como grande parte da comunidade negra se adequa a esta classe social, sofre o dobro.
Na opinião do antropólogo Cid, esta posição de inferioridade que o negro ocupa dificulta ainda mais a identificar-se como um negro. “Acionar uma identidade negra envolve acionar direitos que posicionam atores sociais em lados opostos de algum conflito em níveis diferentes da hierarquia social. Se definir negro é assumir uma oposição à elite e contestar as representações que ela faz dos negros, como por exemplo a posição de negras que atuam como atrizes somente nos papéis de empregadas domésticas".
Alguns movimentos negros tentaram reverter a carga pejorativa relacionada à identidade negra assumindo sua especificidade e se organizando como um grupo social, o que consequentemente acaba por afirmar diferenças em relação aos demais. Na análise do professor Lima, os movimentos Black Is Beautiful ou Movimento Negro Brasileiro, da década de 1970, fizeram o papel de ressaltar o que há de bom em ser negro, o que também fomentou a produção de materiais culturais, tais como o movimento Hip Hop e tantos outros.
“Nascer negro é consequência, ser é consciência” diz a frase de Zumbi dos Palmares. É com esse pensamento que Evandre educa seus filhos sobre o que há de mais particular da identidade negra no Brasil: “precisa saber que muitas vezes vão sofrer abuso pela cor de pele, mas que mesmo assim precisam lembrar que o que faz uma pessoa não é a cor, e sim a tua consciência”, diz.

Se definir negro é assumir uma oposição a elite
Professor-doutor em antropologia, Ricardo Cid da UFPR.

Why We're Great >


